A um só tempo símbolo de progresso, romantismo e aventura, as ferrovias perderam importância na evolução da urbe ao longo dos tempos e, abandonadas, tornaram-se locais feios e degradados. Em busca da reciclagem dessas áreas ao redor da malha de 260 km de trilhos da capital, um conceituado trio de urbanistas ligados a importantes universidades paulistanas pensou alguns projetos, a exemplo do que ocorreu em Barcelona, na Espanha, e em São Francisco, na costa oeste dos Estados Unidos. Em linhas gerais, a ideia desses profissionais é revitalizar partes do Ipiranga, Mooca, Brás, Água Branca e Barra Funda e criar bairros mais verticalizados, cercados por generosas áreas verdes, em pontos próximos a estações de ônibus e de metrô.
Costura Urbana entre via férrea e rio
O arquiteto e urbanista Bruno Padovano propõe um conjunto urbano com várias quadras ao redor do Tietê, no bairro da Água Branca
Próximo do rio Tietê, em lote de 1 milhão de m², no bairro da Água Branca, o arquiteto Bruno Padovano imaginou um conjunto urbano com várias quadras de 150 x 180 m2, todas de contornos irregulares por causa do desenho assimétrico da região. A implantação teria 405 mil m² de área construída e mais de 400 mil m² de área verde para abrigar jardins, quadras esportivas, playgrounds e piscinas. Sobre dois pisos de grandes proporções, com lojas nas fachadas e garagens no interior, seriam erguidas torres de 29 e 40 andares com capacidade para atender 20 mil famílias, a maioria delas de classe média. Bem espaçadas e com alturas diferenciadas, as construções abririam terreno para zonas de vegetação contínua, evitando assim uma atmosfera claustrofóbica no lugar. Sobre a base de dois andares, o conjunto de prédios ficaria distante da calçada. Resultado? Mais segurança aos moradores.
Bruno Padovano calcula gastos de R$ 4 bilhões para tirar o bairro multiuso do papel. De início alto, o valor poderia ser rateado em uma espécie de consórcio entre diversos construtores. Cada um deles responsável pela execução de uma das quadras. “O adensamento entre os trilhos e o rio, com acesso fácil aos meios de transporte coletivo, ajuda a deixar a cidade mais compacta, otimizando a infraestrutura”, pondera o arquiteto. Boa ideia em um momento em que propostas engajadas são o máximo da modernidade.
Ar futurista em território suspenso
O arquiteto e urbanista Carlos Leite propõe uma grande marquise às margens do rio Tamanduateí, no Ipiranga
Numa faixa de 1,5 milhão de m² ocupada por galpões desativados às margens do rio Tamanduateí, no Ipiranga, o arquiteto Carlos Leite pensou uma grandiosa marquise com 4 km de extensão, que cruzaria o rio e abrigaria parque linear, praças elevadas, áreas de lazer, de alimentação, de comércio, hospitais, universidades e ciclovias. A ferrovia, por sua vez, poderia ser revitalizada e virar metrô de superfície. “Seria um grande eixo de convivência e diversão num espaço com as mesmas dimensões da avenida Paulista”, diz. Desenvolvido para a Urban Age – agência ligada à britânica London School of Economics, que reúne pesquisadores do mundo inteiro –, o projeto prevê a reciclagem a partir do adensamento habitacional no bairro novo e da melhoria do transporte público local com a implantação de outras estações da CPTM. Tudo com dinheiro da iniciativa privada.
Ao contrário da experiência espanhola, que usou verbas públicas na recuperação de Barcelona, o estudo comandado por Carlos Leite para reinventar a capital, com a participação de profissionais do Sindicato da Habitação (Secovi-SP), propõe estratégia semelhante à aplicada em São Francisco. O primeiro passo seria a criação de uma agência reguladora, com vida própria, para dar continuidade ao projeto mesmo diante de futuras trocas de governo. Só uma entidade independente atrairia investimentos privados na ordem de R$ 1,73 bilhão. De quebra, a cidade ganharia 150 mil m2 de equipamentos públicos, 20 mil unidades habitacionais para várias faixas de renda e 30 mil postos de trabalho. “Reciclar o território é mais inteligente do que substituí-lo, é dar uma resposta para um futuro verde.”
Mais poesia em meio à aridez da urbe
A proposta do arquiteto Ciro Pirondi traz alternativas de cultura e lazer ao redor dos trilhos
Como rompermos o sentido longitudinal da ferrovia para unir os dois lados separados por ela?”, pergunta o arquiteto Ciro Pirondi, da Escola da Cidade. Cicatrizes urbanas a dividir a metrópole, as vias férreas aos poucos foram separando bairros que cresciam para além dos trilhos, marginalizando-os até, como se os trilhos de ferro fossem rios. Incomodado, Ciro lança algumas ideias nobres para resgatar esse forte traço simbólico paulistano. “Se a gente fosse desenhar São Paulo, documentaria a natureza da serra da Mantiqueira, os rios, os espigões da Paulista e, sem dúvida, as ferrovias, pois a cidade se desenvolveu a partir desses eixos.” Para ele, as estações seriam o ponto de partida da mudança. À exemplo da Júlio Prestes, que ganhou novo uso, e a da Luz, repaginada, a de Santo Amaro e tantas outras nas zonas leste e oeste poderiam abrigar centros de memória, pois são lugar de encontro, não só de passagem.
Na opinião do arquiteto, essa recuperação se irradiaria para o entorno, com a criação de parques lineares e a revitalização dos trens. Sem dúvida, a parte mais atraente (e barata) da proposta traz vagões estacionados em desvios, nos fins de semana, aproveitando-se de alguma encosta para fazer dos trilhos anfiteatros ao ar livre. Haveria trens-cinema, teatro, orquestra, biblioteca e multimídia levando cultura à população. “É uma ideia com um pé na realidade e outro na utopia.”
Reportagem: Denise Gustavsen
Fotos: Marcos Lima